
BRASÍLIA – O cientista político e especialista em relações internacionais Igor Calvet assume o comando na Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) em um momento em que as montadoras tradicionais, estabelecidas há décadas no Brasil, travam uma queda de braço com fabricantes chinesas.
Não se trata apenas de uma disputa de mercado − no caso, o brasileiro, o sexto maior do mundo –, mas também da atenção das autoridades em Brasília na gestão das políticas públicas. Há mais de um ano, a Anfavea tenta convencer o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) a antecipar o aumento da tarifa de importação de veículos elétricos − o imposto hoje está em 18% e deverá voltar a 35%, de forma plena, em julho de 2026.
O argumento é o crescimento rápido de vendas de carros chineses no Brasil, notadamente da BYD. Na visão do setor, essa enxurrada tende a se agravar com a guerra comercial travada entre EUA e China.
Mas, em fevereiro, as empresas chinesas foram para o contra-ataque: a BYD ingressou com dois pedidos na Câmara de Comércio Exterior (Camex), colegiado formado por 11 ministérios, para reduzir as tarifas de importação e não aumentá-las, como quer a Anfavea.
Em entrevista ao Estadão, Calvet afirma que o pedido das chinesas é uma afronta. “São veículos que chegam praticamente prontos aqui, só falta apertar parafusos. Veja, a gente está pedindo para recompor a alíquota, e os novos entrantes estão pedindo para reduzir alíquota para um processo produtivo muito menos sofisticado”, afirma o executivo.

“Isso é uma afronta, um desrespeito ao Estado brasileiro, representado hoje por um governo que tem uma política industrial. Fazer um pedido desses é uma afronta para nós que estamos aqui no Brasil há décadas, investindo na produção local, e isso é uma afronta também aos trabalhadores.”
Calvet afirma temer que o pedido das montadoras chinesas avance na Camex e diz que, apesar do apoio do vice-presidente e chefe do MDIC, Alckmin, e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vê o governo divido entre os dois lados desse embate.
As montadoras tradicionais e as chinesas também travam uma batalha silenciosa na fixação do IPI Verde, que vai tributar os veículos de acordo com critérios de eficiência energética, de potência e ambientais, como a reciclabilidade do automóvel. Essa tributação é parte do programa Mover, de estímulo ao setor automotivo, apresentado em 2023 pelo ministro e vice-presidente, Geraldo Alckmin, mas que ainda depende de regras para começar a valer.
O executivo tem 40 anos e será o primeiro presidente da Anfavea que não é também executivo do setor automotivo. Com experiência no governo federal − foi secretário do MDIC no governo Michel Temer e da Economia sob Jair Bolsonaro −, ele conduzirá as negociações comerciais do setor no momento em que o ambiente internacional fica mais instável para as vendas brasileiras no exterior.
Além de reclamar de uma disputa, a seu ver, desleal no Brasil, Calvet já discute com representantes de México e Colômbia condições para a produção feita no Brasil. Ele celebra a volta das vendas para a Argentina, mas diz temer os efeitos de uma atuação de montadoras instaladas no México em direção à América Latina e a revisão do acordo comercial com a Colômbia.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O imposto de importação sobre veículos elétricos está subindo gradualmente - subirá novamente em julho deste ano - num calendário que vai até o ano que vem. A Anfavea nunca concordou com o cronograma e queria antecipá-lo. O que mudou agora?
Esse pleito é de fato do ano ado, mas as discussões se iniciaram muito tempo antes. Tivemos um pico de importações grande no ano ado e, nesse ano, possivelmente vamos chegar a quase 200 mil veículos importados, grande parte oriundos da China. O pleito é para a recomposição da alíquota; ela sempre foi 35%, foi zerada, e agora a gente pediu a recomposição. O governo veio com a solução de fazer isso gradativamente e com cotas, o que era melhor do que não fazer nada.
Acontece que, quando nós formalizamos o pleito, que era uma janela da Camex, haveria a visita do Xi Jinping em dois ou três meses. Obviamente, os maiores afetados seriam os veículos chineses, e por razões políticas, imagino, isso não foi feito naquele momento. Neste momento, nós pressupomos que essa questão geopolítica Estados Unidos-China esteja fazendo com que o governo brasileiro não tome nenhuma medida.
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Mas se já existe a previsibilidade na subida, isso não basta?
A antecipação da recomposição deve se dar porque também houve uma antecipação das importações. A cada momento de aumento da alíquota do imposto de importação, as importações sobem tragicamente. Isso aconteceu no ano ado e neste ano já está acontecendo também.
Em que medida essas importações estão destoantes?
Neste ano, nós já importamos, de janeiro a março, 112 mil veículos. São 22 mil veículos a mais do que no mesmo período do ano ado. E, se esse movimento do ano ado se repetir, nós vamos ter um grande estoque também, que vai ultraar 100 mil veículos chineses. Temos a informação de que tem um navio chegando com 9 mil unidades, maior ainda do que o do ano ado, que deixou todo mundo impressionado.
O pleito da Anfavea já tem meses. Por que acreditam que agora vai?
O Brasil foi o único país que não impôs tarifas maiores. Os Estados Unidos estão agora com 135% ou 150% com a China, a gente nem sabe mais. Já estava com 100%, mas agora continua impeditivo. O Canadá está com 106% e a Índia, com 75%. A Europa fez uma investigação de subsídios contra a China, e está aplicando até 48%. A BYD, porque contribuiu com as investigações de dumping, ficou com 17%.
Por que eu faço questão de dizer isso? Porque houve uma comprovação de subsídios da China no que diz respeito a veículos elétricos. Então, a gente tem um excesso de produção chinês, cujo mercado não cresce no ritmo como crescia anteriormente. Eles têm uma capacidade instalada para produzir 50 milhões de veículos e estão produzindo 30 milhões. O consumo global é de cerca de 85 milhões de veículos por ano. O mercado deles é o dobro do mercado americano. O volume grande dá uma redução de custos, obviamente, porque é uma economia de escala. Se você adicionar os subsídios já provados pela União Europeia e baixas taxas do imposto de importação nos países de destino, você tem um conjunto de fatores que tornam a competição desigual.
Vocês comprovaram dumping no Brasil (prática anticoncorrencial que consiste em fixar preços mais baixos do que os de produção com o objetivo de eliminar concorrentes)?
Nós contratamos um escritório de advocacia especializado nisso, que está fazendo uma análise de viabilidade para a gente entrar com o processo de dumping, que é muito mais demorado – em média, 18 meses para esse processo, porque tem uma auditoria in loco, visitas. Diante do cenário que a gente está, ter 35% é melhor do que você ter 18% ou 25% de tarifa de importação. Dos países produtores, o Brasil é o mais aberto neste exato momento. A gente fica imaginando, talvez, 200 mil veículos chineses entrando no Brasil, o que é um cenário assustador. E eu fico muito preocupado com os sinais que são dados.
Como assim?
Agora há um pleito na Camex para redução da alíquota do imposto de importação, que é exatamente o contrário que a gente está pedindo – é por parte deles, para a produção no Brasil de CKD e SKD, que são veículos que chegam praticamente prontos aqui, só falta apertar parafusos. Veja, a gente está pedindo para recompor a alíquota, e os novos entrantes estão pedindo para reduzir alíquota para um processo produtivo muito menos sofisticado. O que as empresas que estão instaladas no Brasil e que anunciaram investimentos estão fazendo? Eles têm estamparia, funilaria, fazem todo o processo produtivo, fazem motores no Brasil. E o que acontece com a empresa que está pedindo a redução do imposto de importação para trazer basicamente o carro pronto e só apertar o parafuso aqui?
Isso é uma afronta, um desrespeito ao Estado brasileiro, representado hoje por um governo que tem uma política industrial. Fazer um pedido desses é uma afronta para nós que estamos aqui no Brasil há décadas, investindo na produção local, e isso é uma afronta também aos trabalhadores. Eu fui ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e falei com eles sobre isso. Basicamente, o que eles estão dizendo é: “Nós vamos entrar no Brasil, mas não estamos querendo gerar muito emprego; é aquele pouquinho mesmo”.
Acredita que o pedido deles pode andar antes do feito pela Anfavea?
Esse pedido entrou depois do nosso, mas nada garante que ele não vá ser analisado antes. Não tem uma fila. Não é muito claro esse rito na Camex na análise dos pedidos.
Houve uma sinalização?
O discurso me diz que nós seremos atendidos, mas a prática de não colocar nem em pauta na reunião da Camex pode me dizer que não. Mas eu estou insistindo nisso por conta dessa conjuntura. O pleito tem sentido, no mérito de onde tudo está acontecendo; não é no Brasil, é no mundo. Mas governo são vários governos. Nós temos uma sinalização positiva, faço questão de dizer isso, do MDIC e do Ministério da Fazenda, que vocalizam a favor do nosso pleito. Mas a Camex é um colegiado, tem vários outros ministérios.
O sr. acredita que há uma questão regional? A BYD está instalada na Bahia, Estado natal do chefe da Casa Civil, Rui Costa. Durante a votação da reforma tributária, houve uma defesa dos interesses das montadoras do Nordeste pelo Palácio do Planalto.
Quero crer que não.
O sr. acredita em alguma sanção do governo Lula contra a China, caso se comprove dumping?
No caso da investigação sobre subsídios, como fez a União Europeia, ela é contra o país, contra a China. Provou-se que o Estado chinês faz isso. Eu acho muito difícil o Estado brasileiro fazer essa investigação, sobretudo porque a China é um dos maiores compradores do Brasil. Essa é uma indisposição que o Estado Brasileiro não quer ter. Mas, no caso do dumping, é contra empresas específicas, não contra o Estado chinês. Essa é possível, porque é um pleito do setor privado brasileiro, para o governo brasileiro investigar se as empresas praticam dumping.
Mesmo que o horizonte seja superior a 12 meses? Ou seja, pode ser concluído depois que a alíquota de importação já chegue a 35% (previsto para julho de 2026).
Vale a pena, porque dumping e subsídio são práticas desleais de comércio. Então, em se provando isso, não é uma questão de competição; é prática desleal de comércio que se ataca juridicamente. Tarifa é uma outra questão, que é muito mais discricionária, e que pode se dar por questões de pico de importação, por mudança da conjuntura internacional. Poderia fazer a qualquer tempo.
Dado que todo mundo se fechou, 35% então não ficou pouco?
A gente não pode pedir mais, porque o Brasil consolidou na OMC que 35% é a sua tarifa máxima.

O consumidor brasileiro não corre o risco de ter um carro muito caro, por diferentes razões, como a tributação, por exemplo, e pouco avançado em termos tecnológicos?
A gente tem de pensar em duas coisas. Primeiro, a indústria automotiva, hoje, é uma indústria global. Um carro produzido por uma montadora aqui é o mesmo fabricado no mundo inteiro. Do ponto de vista de ganho tecnológico, você tem diferenças de modelos e de regulamentação, mas não na plataforma que está fazendo o carro. De 2012 para cá, o número de exigências, por exemplo, ambientais e de segurança nos veículos, aumentou drasticamente. Isso é regulamentação, que virou custo em cima do carro. E a gente tem de lembrar que o Brasil é um País de renda média para baixo. Isso também é um limite. A gente tem uma carga tributária que hoje varia de 40% a 44% do preço do automóvel no Brasil. E a gente tem uma questão também que é: ao longo dos últimos anos, o produto mudou. O carro se tornou mais tecnológico, com mais componentes eletroeletrônicos. A maior parte do veículo, hoje, tem tecnologias novas, nem todas produzidas no Brasil. O custo delas proporcionalmente dentro do carro aumentou drasticamente.
Mas vai reduzir a competição no Brasil...
Na teoria, vai ter uma redução de competição, mas quantas marcas a gente tem no Brasil hoje? Mais de 30, certamente, algumas com um share (participação) pequeno do mercado. Então, tem empresa que tem 4%, 5% do mercado. Onde você consegue mais volume, você consegue reduzir mais preço. Mas eu não acredito que (35% de tarifa de importação) seja impeditivo para novos entrantes. Todo mundo (as montadoras) está entrando com carro híbrido com várias marcas neste ano no Brasil. Outras, além das chinesas, estão vindo com elétricos.
O sr. tem falado muito sobre o risco do desvio de comércio, de possível invasão de carros mexicanos no Brasil em razão do bloqueio dos EUA. O medo é que eles venham para o Brasil ou ocupem espaços hoje da indústria brasileira no exterior, como na Colômbia?
O de imediato, no nosso caso, é a competição no Brasil. Eu estive na Embaixada do México na semana ada. Eles não acreditam que isso vai acontecer, porque eles vão reorganizar a produção mexicana para continuar atendendo aos Estados Unidos. Inclusive, a tarifa sobre o México está suspensa. Mas (o nosso temor é que) quando os Estados Unidos impõem tarifas ao México, eles geram uma reorganização da indústria automotiva mexicana, esse carro tem de ir para algum lugar. Vai para onde? Eles têm mais liberdade de comércio com o Brasil, temos um acordo de livre comércio com o México. Então, é uma questão de adaptação do índice de conteúdo local para ar o mercado brasileiro. As empresas que estão no México são as mesmas empresas que estão no Brasil, mas as decisões são globais. Se tiver um custo de produção menor no México, vai produzir no México para vender no Brasil. É assim que funciona. No médio prazo, e isso é o que mais me preocupa, há um desvio de investimentos. As empresas podem decidir investir no México e não no Brasil.
Mas isso se trata com políticas de defesa comercial ou com a abertura de novos mercados?
Aí não é questão de defesa comercial porque é o jogo de mercado, não é uma questão anticoncorrencial. Temos de abrir novos mercados. Temos de fazer o dever de casa que a gente nunca fez, de gerar competitividade, de qualificação de trabalhadores; a questão tributária também é mais favorável no México. Mas o Brasil perdeu participação na América Latina nos últimos dez anos. A gente já chegou a ter 25% do mercado de autoveículos, que incluem automóveis leves, caminhões e ônibus. Hoje, somos 13%. A China tem 25%. Temos de fortalecer esse mercado. Temos um acordo com a Colômbia, que eles denunciaram agora.
Qual é a estratégia para o comércio exterior? Rever os acordos automotivos?
Nunca é interessante a gente ter um jogo de xadrez em múltiplos tabuleiros, porque uma negociação vai influenciar a outra. E, nesse contexto de mundo muito instável, de Estados Unidos atacando Colômbia, atacando o México, a China despejando a produção dela na América Latina, a gente sabe que tem de aumentar a preferência tarifária brasileira nos acordos automotivos, mas não é claro ainda por onde começar. Os principais mercados são a Argentina, que está crescendo bastante, Colômbia e México. Com a Colômbia, estou indo nas próximas duas semanas ao país, porque o acordo expira em setembro e nós estamos negociando os termos com eles, questões de cotas e conteúdo local, por exemplo. Eles não apresentaram ainda quais são os termos do que eles querem negociar.
E com a Argentina, há chance de rever o acordo automotivo ou as cotas de vendas ao país?
Nós estamos indo bem: possivelmente vamos chegar a 550 mil unidades. Já foi um mercado de quase 1 milhão de unidades, regrediu nas crises argentinas para 300 mil unidades, e agora vai chegar a 500 mil. Grande parte dos nossos embarques estão com destino à Argentina. Então, eu diria que a Argentina, não vou dizer que tem nos salvado, mas tem nos mantido com um excelente nível de exportações. Mas há certos distúrbios nessa relação, porque existe uma cota de veículos eletrificados (não feitos no Brasil) que podem ser importados e vai chegar a quase 10% do mercado. Milei nunca fez gestos concretos, mas já falou que quer tirar a Argentina do Mercosul; então, é mais um momento de instabilidade, de observar do que sentar e negociar.
Sobre a questão tributária, no programa Mover, de estímulo à indústria automotiva, saiu o decreto que era aguardado, mas não a parte mais sensível, que é a tributação dos veículos de acordo com a sua eficiência energética e reciclabilidade – o chamado IPI Verde, que vai diferenciar a tributação dos veículos se elétricos, híbridos ou a combustão. Qual é a expectativa da Anfavea?
A gente não faz escolhas por nenhuma tecnologia. Todas as nossas empresas têm um portfólio de produtos híbridos e elétricos. Mas tenho dito que, do ponto de vista da lógica de política pública, faz sentido essa diferenciação. Porque não se pode tributar um carro a diesel como eu tributo um carro elétrico pela emissão de CO2. Mas um veículo híbrido flex brasileiro, hoje, emite menos CO2 do que um produzido na Europa por causa da fonte de energia. Aí você vai me dizer: mas um carro elétrico tem de ter uma tributação menor porque não emite CO2. Depende, se ele for produzido no Brasil... Analisando do poço à roda, nem sempre essa resposta se traduz com uma legislação simplesmente dizendo qual é a rota tecnológica. Se ele for produzido na China, usando energia termelétrica ou nuclear, ele vai emitir mais do que um híbrido flex brasileiro.
Mas isso vai ser levado em consideração no IPI Verde?
Não vai ser levado em consideração. Porque o que está sendo levado em consideração é a tecnologia em si. Então, do ponto de vista da lógica, a Anfavea apoiou e apoia (o IPI Verde). Mas nos foi apresentado, não oficialmente, mas foi apresentado à toda a indústria, a tabela com as alíquotas do IPI Verde. E nós detectamos um aumento de carga tributária em relação ao que é hoje o IPI.
Aumenta a carga para todos os modelos?
Não para todos individualmente, mas na indústria automotiva no geral. E aí nós nos posicionamos contra. A gente não é contra o IPI Verde, a gente é contra o aumento de alíquotas, o aumento de carga.
Mas vai aumentar a carga para o equivalente do atual carro 1000, por exemplo? Ou acaba esse conceito?
Acaba esse conceito, mas a potência continua como um dos parâmetros. Mas há gradações. Mas a carga tributária, o quanto o Brasil arrecadava de IPI, vai aumentar. Aí a gente não concorda.
O vice-presidente Geraldo Alckmin diz que está para sair.
Esperamos há semanas.
Mas se não sair o IPI Verde, o Mover e toda a política de estímulo ao setor não fica capenga?
O que nos preocupa mais é que o IPI Verde é a base do Imposto Seletivo, que entra em vigor em 2027. Isso causa uma insegurança no mercado gigantesca. A gente não queria e continua sem querer o Seletivo, mas o setor terá de fazer duas mudanças tributárias em menos de 18 meses, se o IPI Verde sair agora. Já é um tema complexo o suficiente para a gente ar por uma mudança agora. E depois ar por outra? Aí a gente começa a entrar em uma seara que é o custo de conformidade das nossas empresas em tão pouco tempo com duas estratégias tributárias.
Mas qual é o pleito e vocês? É segurar o Seletivo então?
O Seletivo não pode ser segurado, porque a reforma tributária tem regras. Em 2027, o Seletivo tem de estar rodando. O Seletivo, ele é um grande problema para a gente, pela questão reputacional (o imposto tem como objetivo sobretaxar produtos que façam mal à saúde e ao meio ambiente, o que a Anfavea questiona para os veículos), mas também por uma questão de que uma lei ordinária definirá as alíquotas. E uma lei ordinária pode ser uma medida provisória (de vigência imediata). Em 2027 tem que entrar em vigor; durante as eleições haverá espaço para isso? Quem vai fazer? E qual alíquota? Já estamos partindo de uma alíquota de IVA de 28%, 28,5%. O Seletivo adiciona a esse IVA. No final das contas, será que eu vou ter uma diminuição da carga tributária? Ou vai aumentar? Aí você me pergunta: tem chinês entrando, tem subsídio, tem um monte de questão regulatória, ambiental e o Seletivo. As matrizes nos perguntam como fechar a conta, uma vez que já anunciaram investimentos. E eu não sei a resposta.
Mas o sr. acredita que afete o investimento já? Só pelo fato de haver essa dupla mudança de tributação num prazo tão curto de tempo?
Vai influenciar. Não sei se positiva ou negativamente. Porque a depender da alíquota do Seletivo e da gradação do IPI Verde entre uma tecnologia e outra, você vai mexer no portfólio de produtos das empresas. É uma mudança drástica, que vai mexer com o mercado.
Mas sem o IPI Verde, o Mover não perde o sentido?
Ele se resume a P&D (pesquisa e desenvolvimento), inovação, mas sem dizer exatamente para quê você está fazendo a inovação. O que o IPI Verde traz é um direcional tecnológico para a indústria automotiva no médio e longo prazo, porque orienta a produção com um sistema de bônus e malus. Se você fizer coisas a mais, você ganha mais benefícios. Se você aliar o P&D com o IPI Verde, você diz: “pode inovar aqui para seguir para uma linha de tecnologia mais limpa”. Sem o IPI Verde, é qualquer tipo de inovação. Muitos países fazem isso, mas você não direciona, você deixa que o próprio mercado decida o que é importante em termos de inovação.
O programa anterior ao Mover, o Rota 2030, não tinha nenhum tipo de benefício tributário para as empresas. E o atual tem, são R$ 19 bilhões até o fim do programa.
De P&D. Pouca gente fala, mas ele é contrapartida de um investimento privado prévio. A indústria tem que fazer R$ 60 bi para ter hoje R$ 19 bi, três vezes mais.
Mas dado que o Brasil é um dos maiores mercados do mundo, por que as empresas ainda precisam de benefícios tributários para poder crescer?
No mundo inteiro é assim. Quando a gente fala em trazer P&D para o Brasil, falamos de engenharia brasileira, de design brasileiro. As matrizes perguntam: “me mostra como essa conta fecha”. Por que eu vou fazer no Brasil? Por que eu vou tirar o emprego de um alemão? De um americano? A nossa briga é para fazer a conta fechar, para valer a pena fazer no Brasil. A gente já tem casos, por exemplo, Stellantis, Toyota, e a própria Ford, que o desenvolvimento é feito aqui e exportado para o mundo. Eu diria que o benefício é essencial porque o nosso custo de produção é muito maior.
O que o sr. espera de futuro para a indústria automotiva no Brasil?
Vai haver uma entrada grande de novos competidores. No mundo e no Brasil, veremos a fusão de várias empresas. E vamos ser impulsionados para construir a alternativa global no campo dos biocombustíveis. Porque a solução da eletrificação, ela não é igual para todos os mercados. Hoje o mote no mundo é descarbonizar, independente da tecnologia. A solução da eletrificação, por exemplo, é menos atrativa pelo peso, pela autonomia, para veículos pesados. E mesmo carro de eio num país de renda média, a gente tem uma dificuldade de infraestrutura. Então, por natureza, teremos uma curva de adaptação dessa tecnologia elétrica muito menos íngreme do que um país de renda alta. E a gente já tem a tecnologia disponível que faz o quê? Descarboniza tanto quanto ou, em alguns casos, mais do que a eletrificação.
Então, o sr. imagina que as nossas fábricas ainda vão ter mais carros a combustão?
A gente acredita que em 2040, daqui a 15 anos, 80% dos emplacamentos vão ser de algum tipo de carro eletrificado. Não vai ser tudo elétrico, pode ser plug-in (liga na tomada), com bateria, mas pode combinar com combustão, como o híbrido e o híbrido flex. Vamos ser chamados pela indústria global como forma de contribuir nessa forma na descarbonização.